Helena Margarido Moreira
Helena Margarido Moreira

Professora de Relações Internacionais e Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo.

Imagine que você é o negociador-chefe enviado pela maior potência do planeta para fechar um acordo com o país detentor da maior parte da maior floresta tropical do mundo em busca de um reengajamento nos esforços coletivos para o combate ao aquecimento global. Do outro lado da mesa, o principal interlocutor mostra à tua equipe uma imagem clássica em padarias brasileiras (ênfase no brasileiras) de um cachorro sentado olhando sedento para uma máquina de frango assado – em que os frangos carregam cifrões de dólares – onde se lê “expectativa de pagamento”.

Poderia ter sido apenas um episódio de “choque cultural”, com os negociadores norte-americanos não entendendo a referência. Mas mostra uma falta de preparo da delegação brasileira (ou arrogância, ou estratégia equivocada) em exigir dinheiro sem apresentar um plano em troca.

Vamos voltar um pouco a fita para chegarmos no momento “televisão de cachorro”. Fato: o planeta está aquecendo. Segundo o relatório publicado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) em 2018, o planeta já aqueceu 1,0 ℃ desde os níveis pré-industriais. A cada aumento de temperatura, crescem os riscos associados ao clima para a saúde, para os meios de subsistência, para a garantia da segurança alimentar, para o abastecimento de água, para o crescimento econômico, entre outros. Estes efeitos são sentidos de forma ainda mais severa pela população de baixa renda, aprofundando desigualdades entre indivíduos e grupos sociais.

Os cenários catastróficos elaborados pelos cientistas exigem que os Estados se comprometam hoje com ações de mitigação das emissões de gases de efeito estufa (GEE) e de adaptação às mudanças climáticas. Essas ações vêm sendo negociadas há quase trinta anos, sem grandes resultados. O acordo global mais recente sobre o tema, o Acordo de Paris, assinado em 2015, tem como principal meta evitar um aumento da temperatura global em mais de 1,5℃. Já trabalhando com 2℃, dado o baixo nível de ousadia das metas apresentadas pelos Estados até o momento. Os Estados apresentaram suas metas no momento da assinatura e ratificação do Acordo, que prevê a revisão destes compromissos, seguindo um mecanismo de aumento das ambições, ou seja, que os países sempre apresentem metas voluntárias progressivas. As revisões das NDCs (Nationally Determined Contributions) foram apresentadas ao final de 2020.

Os Estados Unidos são os maiores emissores de GEE do mundo em termos per capita, perdendo o posto de maior emissor global para a China em 2007, em termos absolutos. No nível internacional, os EUA historicamente agiram como bloqueadores das negociações climáticas durante os governos republicanos de Bush pai e filho. Os governos democratas de Clinton e Obama foram abertos às negociações e a assumir uma liderança global no tema, especialmente o último, que colocou os EUA de volta na trilha das negociações sob a Convenção, determinou planos nacionais como o de energia limpa e comprometeu o país com as suas INDCs sob o Acordo de Paris. O governo Donald Trump, tendo o negacionismo como base ideológica de seu governo, retirou os EUA do Acordo de Paris abandonando qualquer postura colaborativa no tema e levou à cabo um desmonte das ações domésticas voltadas à transição energética e redução das emissões de GEE. Qualquer semelhança com o Brasil de Bolsonaro não é mera coincidência. Noam Chomsky (2020) aponta a liderança dos EUA de Trump na construção de uma “internacional reacionária” que busca reformatar a política internacional, e a desconsideração da existência da crise climática é um dos seus principais elementos.

O Brasil é o sexto maior emissor de GEE do mundo, e quase metade de suas emissões advém de mudanças no uso da terra. Segundo o Observatório do Clima, as emissões brasileiras em 2020 provavelmente tiveram aumento com relação aos anos anteriores devido ao aumento das taxas de desmatamento da Amazônia. Desde o início das negociações ambientais internacionais o Brasil foi assumindo protagonismo. A postura histórica da diplomacia brasileira, especialmente desde a redemocratização, foi de diálogo e escuta tanto com os representantes diplomáticos das Partes das Convenções (a Convenção do Clima, por exemplo) quanto internamente com a sociedade civil brasileira. O Brasil atuou, assim, como “ponte” buscando a conciliação dos interesses de países desenvolvidos e em desenvolvimento, sem deixar de fortalecer reivindicações do mundo em desenvolvimento e o conceito de desenvolvimento sustentável. A posição internacional do governo brasileiro atual é, portanto, um ponto fora da curva. O que não significa que os governos brasileiros sucessivamente não falharam em lidar com a agenda ambiental no nível doméstico.

Com este breve retrospecto, chegamos então ao momento atual. A administração Biden/Harris colocou desde a campanha as mudanças climáticas como uma de suas prioridades. As mudanças climáticas são consideradas como um dos grandes desafios globais, o que impacta em questões de segurança nacional da grande potência. Com a necessidade de retomar uma liderança global após o desengajamento do governo Trump, os EUA divergem da China nas questões ligadas às mudanças climáticas, entre outras, e a colocam como competidor a ser contido. Isso passa por recuperar espaço de liderança, e porque não dizer controle, sobre a América Latina. Apesar do Brasil ter ficado de fora do tour de representantes estadunidenses à América do Sul agora em abril, o governo Biden vem negociando a portas fechadas com o governo Bolsonaro uma ajuda econômica para o combate ao desmatamento da Amazônia.

Com a Cúpula de Líderes sobre o Clima, convocada por Biden e que reunirá 40 líderes mundiais, a pressão aumentou tanto sobre os EUA quanto sobre o Brasil. Os negociadores estadunidenses, chefiados por John Kerry, esperam metas objetivas para zerar o desmatamento ilegal, com resultados já neste ano, e mudanças de rumo na gestão ambiental brasileira. Mas são alvo de repúdio de amplos setores da sociedade civil brasileira, e mesmo de senadores norte-americanos, por estarem negociando um acordo sem a participação de outros atores domésticos.

Salles, negociador-chefe pelo Brasil, saliva pelos frangos assados. Mas não apresenta um bom retrospecto para gerar confiança. Salles pede dinheiro para proteger a floresta, mas tratou de implodir o Fundo Amazônia, com quase três bilhões de reais para políticas de combate ao desmatamento do bioma, por discordâncias quanto à governança do Fundo, que exige transparência na prestação de contas e participação da sociedade civil. O mesmo foi alvo, em menos de 24 horas, de dois processos por sua política de desmonte do aparato ambiental brasileiro: uma ação popular promovida por jovens ativistas pela “pedalada climática” presente na revisão da NDC brasileira ao final de 2020 (que permite, ao final, que o país emita mais GEE do que o previsto originalmente); e uma queixa-crime apresentada pelo superintendente da Polícia Federal no Amazonas (que foi exonerado do cargo um dia depois) por “atrapalhar a investigação da PF sobre a maior apreensão de madeira ilegal do país.

Em um momento em que Bolsonaro está sob importante pressão, interna e externamente, um acordo bilionário com a maior potência global é considerado por vários setores da sociedade brasileira como um movimento inaceitável para legitimar um governo que até agora representou apenas retrocessos ambientais e civilizatórios. Para os EUA, é importante reengajar o Brasil no esforço coletivo de combate às mudanças climáticas e ao desmatamento da Amazônia, no âmbito doméstico. Mas até o momento, nenhum plano detalhado foi apresentado pelos interlocutores brasileiros, além do pedido de 1 bilhão de dólares ao ano. Para o Brasil, a Cúpula sobre o Clima é o momento-chave no relacionamento entre os dois países, mas a retórica insistente de Bolsonaro e Salles de defesa da soberania do país (quando esta não está sob ameaça) e recorrentes ataques à sociedade civil e às populações indígenas pode colocar tudo a perder. A ver se o resgate será pago, e em que termos.